Há um período de desenvolvimento psíquico, entre 2-4 anos, em que a criança pensa se tornar invisível diante do outro ou busca tornar o outro invisível diante de si ao fechar os olhos. É comum ver brincadeiras nesse sentido, uma espécie de “esconde-esconde” em que a criança parece cancelar e recriar o mundo toda vez que abre ou fecha os olhos, numa espécie de “super poder”. Há, afinal, um período natural de onipotência na criança, que num desenvolvimento saudável, vai se adequando às demandas concretas da realidade e das relações com o mundo. Mas, até certo momento, a experiência para a criança é real: basta fechar os olhos que o outro desaparece. ⠀
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Num primeiro contato o termo “cancelamento” me soou estranho: uma forma de punição virtual, como campanhas de “unfollow” em massa de figuras que sustentam práticas e atitudes desrespeitosas ou desalinhadas com certo status quo moral, uma “esterilização digital,” digamos. Mas porque estranho? ⠀
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C.G. Jung, ao elaborar sobre o conceito da sombra, nos alerta que uma forma de reconhecer aspectos sombrios deslocados de si é na relação com o outro. Dito de outra forma: aquilo que desagrada-nos nos outros pode ter muito a dizer sobre nós mesmos. A forma que lidamos com o que achamos desprezível no mundo pode ser uma forma de negar a loucura latente que habita em cada um de nós. ⠀
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Ainda que haja práticas que mereçam total repreensão, não me parece que cancelando ou fechando os olhos diante delas possa ser tomado como solução. A meu ver, quando realmente se trata de um mal real, esse não há de ser negado, e sim estudado, aprofundado, dialogado. Conhecer o escopo da destrutividade e insanidade humana é o que pode nos dar recursos para lidar com isso em nós mesmos e no mundo. ⠀
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“Cancelar” em si remete a ecos de um estado de onipotência infantil, onde fechamos os olhos para o que não queremos como forma de sustentar a ilusão de um estado de ser simplório, negando o outro num passe de mágica. Assim, sustento o contrário: enriqueço e amplio a dimensão de meu ser no contato com o outro. Este me parece o amadurecimento necessário para integrar a sombra, e inclusive para lidar com o mal real que há no mundo.

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